Women to Watch

O trabalho invisível das mulheres por trás da IA

Estudo aponta que o funcionamento das grandes plataformas de IA depende de uma força de trabalho invisível, precarizada e, no Brasil, majoritariamente feminina

i 11 de novembro de 2025 - 11h30

Matheus Viana, psicólogo e professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM) (Crédito: Divulgação)

Matheus Viana, psicólogo e professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM) (Crédito: Divulgação)

Por trás das sofisticadas plataformas de inteligência artificial, existe uma legião de trabalhadores que operam nos bastidores, certificando que a máquina está aprendendo corretamente a diferença entre uma ponte e uma escada, por exemplo. São pessoas que ganham centavos online ao realizar “microtarefas”.

“Isso envolve, por exemplo, catalogar rostos em bancos de imagens ou realizar tarefas de rotulagem de dados. Essas empresas precisam desse tipo de tarefa em uma escala muito grande e, por isso, terceirizam o serviço para plataformas específicas”, explica Matheus Viana, psicólogo e professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Em 2023, Matheus participou do maior levantamento empírico já feito sobre esse tema no Brasil, ouvindo quase 500 pessoas. Neste estudo, os pesquisadores descobriram que a maioria dos trabalhadores envolvidos nas microtarefas para a IA são mulheres. O que nos fez questionar: Por que este tipo de serviço atrai mais mulheres no Brasil e quais as condições de trabalho e os impactos que causam? Matheus Viana responde estas e outras perguntas na entrevista abaixo.

Meio & Mensagem – O que é o microtrabalho ou microtarefas relacionadas à inteligência artificial?

Matheus Viana — O microtrabalho se refere a atividades específicas realizadas em plataformas digitais, dentro de cadeias nacionais ou internacionais de terceirização. Existem inúmeras formas de microtrabalho. Há, por exemplo, plataformas voltadas para pesquisas de mercado, outras ligadas à indústria dos jogos, e também o que chamamos de “fazendas de cliques”, que são mercados de trabalhadores responsáveis por impulsionar artificialmente conteúdos nas redes sociais. Mas o maior mercado hoje, especialmente no Brasil, está relacionado à cadeia de produção da inteligência artificial. Quando falamos de tecnologias baseadas em aprendizado de máquina, existe uma necessidade fundamental: ter uma grande base de dados qualificada, com dados classificados e rotulados corretamente. À medida que os parâmetros determinísticos do sistema são criados, é preciso garantir que o aprendizado siga esses critérios, o que exige não só uma base de dados qualificada, mas também uma verificação e supervisão constante. Nessas plataformas, os trabalhadores realizam microtarefas que duram segundos ou poucos minutos, em troca de alguns centavos. Hoje, no Brasil, existem mais de 50 plataformas especializadas nesse tipo de atividade.

M&M – Quais são as condições de trabalho dessas pessoas?

Matheus — Nós [Matheus Viana; Paola Tubaro, Antonio A. Casilli] pesquisamos esse mercado há mais de cinco anos e observamos uma cadeia bastante sofisticada de terceirização dessa força de trabalho dispersa globalmente. É um tipo de trabalho que se dá nas franjas da informalidade, sem qualquer proteção social ou trabalhista, em que o trabalhador assume todos os riscos. Essas tarefas são, em geral, repetitivas, e muitas vezes o trabalhador nem sabe quem é o cliente final ou qual é a finalidade do que está fazendo. Há também dificuldades para receber e sacar o dinheiro. Além disso, algumas atividades são extremamente nocivas e prejudiciais à saúde, principalmente as ligadas à moderação de conteúdo pornográfico, violento ou ofensivo em redes sociais.

Nós realizamos em 2023 o maior mapeamento empírico já feito sobre esse tema no Brasil, ouvindo quase 500 trabalhadores e trabalhadoras. Descobrimos que a renda média mensal dessas pessoas, considerando todas as fontes de ganho, é de R$ 1.888,00. São, em geral, pessoas mais escolarizadas que a média da população, muitas estão cursando ou já concluíram o ensino superior, e costumam ter mais de uma fonte de renda. No entanto, 34% vivem exclusivamente do trabalho nas plataformas, sendo essas as mais vulneráveis. Em média, elas trabalham 15 horas e meia por semana nessas tarefas, sem contar o tempo gasto em qualificação e busca de tarefas, e recebem cerca de R$ 6,00 por hora, o equivalente a aproximadamente US$ 1,80. É um trabalho que exige muito e paga pouco. Para se ter uma ideia, a média brasileira é equivalente ao que a OpenAI pagou a trabalhadores quenianos que fizeram a moderação do ChatGPT, entre US$ 1 e US$ 2 por hora, enquanto, na Holanda, esse mesmo tipo de atividade chega a render cerca de US$ 12 por hora.

M&M – Na pesquisa, você destaca que 3 a cada 5 trabalhadores são mulheres. Por que este tipo de trabalho as atrai mais?

Matheus — Na maior parte dos países, quando falamos da indústria do microtrabalho, a força de trabalho é predominantemente masculina. No Brasil, no entanto, temos uma maioria feminina. Na nossa pesquisa, 64% da amostra era composta por mulheres, e observamos também um grau maior de vulnerabilidade econômica entre elas. Por exemplo, entre as pessoas desempregadas que participaram do estudo, 70% eram mulheres. Se olharmos para o setor de tecnologia da informação, por exemplo, segundo dados do Caged e da PNAD Contínua, as mulheres representam entre 20% e 25% da força de trabalho. E, dentro desse grupo, a maioria está em cargos de suporte, teste ou documentação, enquanto os homens predominam nas áreas de desenvolvimento, segurança da informação e arquitetura de sistemas.

A partir disso, nós trabalhamos com quatro hipóteses para explicar a presença majoritária de mulheres no microtrabalho. A primeira é a promessa feita pelas plataformas de possibilitar o trabalho em casa, conciliando essa atividade com outras demandas. Como as mulheres são, em grande parte, as principais responsáveis pelos cuidados domésticos e familiares, o microtrabalho aparece como uma estratégia de conciliação, ainda que ilusória. Quando analisamos os padrões de uso das plataformas, vemos que os homens acessam em horários fixos, geralmente entre 18h e 22h, enquanto elas entram mais vezes e permanecem conectadas por mais tempo. Isso mostra que elas usam pequenos intervalos, momentos que seriam de descanso entre as jornadas de trabalho, para realizar microtarefas. Tivemos relatos, por exemplo, de mulheres que faziam tarefas durante a madrugada, enquanto amamentavam.

A segunda hipótese está ligada ao padrão histórico de informalização do trabalho no Brasil. Em um país onde 38% da força de trabalho é informal, muitas mulheres recorrem ao microtrabalho como renda extra, já que enfrentam subemprego e baixa remuneração. Há uma precariedade estrutural no mercado de trabalho feminino, com salários menores, maior rotatividade e informalidade, o que empurra essas mulheres para atividades marginais como o microtrabalho. A terceira hipótese é o que chamamos de “feminização do digital”: a crescente presença de mulheres em atividades digitais consideradas leves, repetitivas ou administrativas, vistas como extensões do trabalho feminino tradicional. Assim como ocorre na TI, onde as mulheres ocupam funções de suporte, o microtrabalho também é percebido como uma atividade passiva, que exigiria menos autoridade técnica.

Por fim, a quarta hipótese é a herança colonial, patriarcal e racializada do trabalho no Brasil. Não podemos ignorar o peso dessa cultura, em que o trabalho feminino sempre esteve associado ao cuidado e à servidão. O microtrabalho, embora esteja inserido em uma indústria altamente sofisticada, como a da inteligência artificial, é um trabalho invisibilizado, repetitivo, mal remunerado, sem reconhecimento autoral e com pouca autonomia decisória. Na minha visão, isso ressoa profundamente com essa tradição histórica de exploração do trabalho feminino no país.

M&M – Quais os impactos e as queixas que esse tipo de trabalho causa nas pessoas envolvidas?

Matheus — Acho que a gente precisa discutir os impactos a partir de dois fenômenos. O primeiro é que as pessoas estão ali porque precisam de dinheiro. A primeira queixa é justamente a falta de sentido das atividades. Então há uma sensação de esvaziamento, um desgaste que vem da própria natureza do trabalho. Em muitos casos, o trabalhador não entende o propósito do que está fazendo, não sabe para quê ou para quem aquilo vai ser usado. Outro ponto é a falta de transparência das plataformas. Um trabalhador contou que já estava há três anos em uma delas e ficou duas semanas sem entrar porque as filhas foram visitá-lo. Quando voltou, percebeu que tinha sido retaliado. Não havia mais tarefas disponíveis e, na semana seguinte, recebeu um e-mail de desligamento. Essa instabilidade é muito ansiogênica. A ausência de tarefas, as negativas sem justificativa e toda essa opacidade algorítmica geram muita ansiedade entre os trabalhadores. Por fim, há as tarefas de moderação de conteúdo, especialmente as ligadas a fact-checking ou às redes sociais, que expõem essas pessoas a materiais violentos ou perturbadores. Esse é, sem dúvida, um dos trabalhos mais nocivos para a saúde desses profissionais.

M&M – Qual a resposta das plataformas frente às queixas e impactos deste tipo de trabalho?

Matheus — Embora as plataformas vendam um discurso de grande flexibilidade, seus termos de uso deixam claro que os riscos e custos derivados da atividade, inclusive os psicológicos, são de total responsabilidade do trabalhador. Existem também movimentos globais importantes. Algumas semanas atrás, por exemplo, foi publicado um relatório da Fair Work sobre “Cloud Work”, que abrange tanto o microtrabalho quanto o trabalho freelancer em plataformas. Eles avaliam as condições mínimas de trabalho digno com base em cinco critérios e dialogam com as plataformas, atribuindo notas de 0 a 10. Importante dizer que 10 não significa algo excepcional, mas apenas o cumprimento de condições básicas de trabalho digno.

Esse processo busca gerar publicidade e pressão sobre as empresas. Eles conseguiram promover 56 melhorias nas plataformas, geralmente nas menores, que se dispuseram ao diálogo. As maiores, por outro lado, se recusam a conversar e seguem recebendo nota 0 há anos. Outro movimento relevante vem da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Este ano foi marcado pelo início das discussões sobre a regulação dos trabalhos em plataformas, incluindo o cloud work e o trabalho de dados. Foi publicada a chamada “carta amarela”, que agora já tem uma versão “azul”, com o objetivo de estabelecer uma convenção internacional que defina condições mínimas de garantia de trabalho digno nessa cadeia produtiva. Acredito que o próximo passo será a criação de diretrizes globais, porque, em toda indústria mundial, há uma responsabilização pela cadeia produtiva. Se pegarmos o exemplo da Zara, ela precisa fazer diligência prévia, ou seja, responder por toda a sua cadeia, inclusive por eventuais casos de trabalho forçado em fornecedores terceirizados. Mas, na indústria mais sofisticada do mundo, que é a da inteligência artificial, isso simplesmente não existe. Então, por que uma big tech não deve ser responsabilizada por auditar sua própria cadeia produtiva e garantir condições dignas de trabalho em todas as etapas? Falta de tecnologia, certamente, não é.

M&M – Este tipo de trabalho está inserido num contexto do aumento de trabalhos plataformizados. Por que as pessoas estão se submetendo cada vez mais a este tipo de trabalho ao invés de buscar um trabalho com garantias de direito?

Matheus — Qual a diferença entre um trabalhador na França e um brasileiro que faz isso? A resposta é que estamos no sul global. A informalidade aqui é completamente diferente da francesa, que gira em torno de 5% a 8%, enquanto no Brasil chega a 38%. Se você perguntar a um francês o que significa o mercado formal de emprego, ele vai responder que é sinônimo de proteção social e trabalhista. Ele está dentro de um sistema de seguridade e previdência social. No Brasil, ser CLT não significa necessariamente estar livre da precariedade. Quando falo desses trabalhadores, a maioria tem ensino superior completo ou está cursando, mas a média salarial é de R$ 1.888,00, e muitos vivem em regiões metropolitanas. Ou seja, grande parte deles está nas plataformas e também no mercado formal. É o conceito da multiatividade, do pluriemprego, pessoas que estão nessa lógica da “viração”, que trabalham muito, geralmente mais de 12 horas por dia, mas cujos empregos, sejam formais ou informais, não garantem subsistência. Então, elas precisam buscar outras fontes de renda.

Por exemplo, entrevistamos uma advogada que mora em uma capital brasileira e cuida do pai acamado. Além da advocacia, ela faz trabalhos de treinamento de dados, vende cursos como afiliada da Hotmart e criou um e-book sobre aromaterapia. Esse é o retrato do trabalho no Brasil: pessoas com alta qualificação formal, mas cujos empregos não asseguram uma renda suficiente. A internet se tornou um grande reduto desse tipo de trabalho. Existe uma convergência de diferentes formas de trabalho digital: a pessoa treina IA, faz tarefas de clique, entrega no iFood, aposta em sites esportivos, já tentou ser home broker porque pagou uma mentoria de alguém que promete ensinar a ganhar dinheiro online. Essa é a complexidade da situação.

E as próprias plataformas estão se movendo nessa direção. Na semana passada, por exemplo, a Uber anunciou, depois de testar na Índia, que vai começar nos Estados Unidos uma operação em que o motorista, enquanto não tiver corrida, poderá realizar tarefas de rotulagem de dados para IA dentro do próprio aplicativo. É o que estamos chamando de “grande convergência do trabalho digital”. Em vez de remunerar o tempo ocioso, a plataforma oferece microtarefas. Ou seja, o motorista de Uber passa a ser também rotulador de dados da indústria de IA.

M&M – Você comentou sobre os movimentos de regulamentar esse tipo de trabalho. O que significa promover garantias mínimas de trabalho para este tipo de serviços?

Matheus — Acho que o ponto central é entender as particularidades desse tipo de trabalho. Não é o mesmo trabalho do entregador, nem do motorista. Também não se trata de simplesmente enquadrar esses trabalhadores na CLT, mas sim de garantir condições mínimas de trabalho. Isso passa por questões como transparência algorítmica e garantia de representação coletiva. Hoje, muitas plataformas proíbem qualquer forma de organização entre os trabalhadores e até impedem que eles participem de grupos no Telegram, WhatsApp ou Reddit para compartilhar experiências. Então, é fundamental reduzir essa opacidade e criar mecanismos que garantam mais transparência. Se um trabalhador for bloqueado de um projeto ou tiver uma tarefa rejeitada, ele precisa saber o motivo. Também é essencial garantir uma remuneração mínima, pelo menos equivalente ao salário mínimo de cada país. Por que pagar US$ 12,00 por hora a um holandês, US$ 2,50 a um brasileiro e US$ 0,80 centavos a um filipino pelo mesmo projeto? Deveriam existir parâmetros mínimos. É disso que estamos falando: direitos básicos, como representação justa e condições dignas, especialmente em áreas como a moderação de conteúdo. Essa indústria depende de trabalho humano, pois a máquina não faz sozinha. A questão é: como fazer isso e quais são as responsabilidades envolvidas? Esses são os grandes desafios hoje.